jaffaladvogados.com.br

As Alterações Mais Preocupantes da Lei 15.272/2025 no Regime das Prisões: Uma Análise Sob o Viés Garantista

As alterações mais preocupantes da Lei 15.272/2025 no regime das prisões: uma análise sob o viés garantista

A Lei n. 15.272/2025 promoveu profundas mudanças no capítulo das prisões do Código de Processo Penal, sob o discurso oficial de reforço da segurança pública e de racionalização da atuação policial e ministerial. No entanto, sob o ponto de vista garantista, algumas das novas disposições fragilizam pilares constitucionais do processo penal democrático, especialmente a presunção de inocência, a não autoincriminação e a excepcionalidade da prisão cautelar.

Entre todas as alterações, três eixos se destacam pelo potencial de ampliar o poder punitivo estatal e de tensionar garantias fundamentais:
(1) as novas hipóteses impeditivas da concessão de liberdade provisória no art. 310, § 5º, incisos III e IV;
(2) a previsão da coleta obrigatória de material genético prevista no art. 310-A; e
(3) os novos parâmetros de aferição de periculosidade no art. 312, § 3º, especialmente no que toca ao uso de inquéritos e ações penais em curso como fundamento de prisão preventiva.

A seguir, examinam-se esses pontos com maior profundidade.


1. A presunção de inocência sob ataque: os incisos III e IV do art. 310, § 5º

O novo § 5º do art. 310 do CPP passou a estabelecer situações em que não se recomendaria ao juiz a “concessão de liberdade” na audiência de custódia. Embora apresentados como critérios orientadores, na prática funcionarão como fundamentos para decisões automáticas de manutenção da custódia, especialmente porque incorporados no próprio texto legal.

Dentre os incisos introduzidos, dois suscitam extrema preocupação sob a ótica garantista:

Art. 310, § 5º, III – liberação anterior em audiência de custódia por outra infração penal

O inciso III prevê como circunstância desfavorável o fato de o agente já ter sido liberado anteriormente em audiência de custódia por “outra infração penal”, ainda que sem denúncia, sem recebimento de denúncia, sem sentença e — principalmente — sem condenação transitada em julgado, exceto se houver posterior absolvição.

Cria-se, assim, uma consequência prática preocupante:

  • um indivíduo absolutamente inocente — porque sem condenação — passa a sofrer efeitos jurídicos negativos pela simples circunstância de ter sido liberado anteriormente;

  • a presunção de inocência deixa de ser um estado jurídico e passa a ser apenas retórico;

  • transforma-se o histórico de flagrantes, ainda que resultantes de erros, não persecução ou absolvição futura, em marco para tratá-lo como sujeito mais perigoso.

Trata-se de um deslocamento simbólico e normativo que aproxima o modelo brasileiro de sistemas de “antecedentes não condenatórios”, criticados no âmbito internacional justamente por violarem frontalmente o princípio da presunção de inocência.

Art. 310, § 5º, IV – cometimento do crime na pendência de inquérito ou ação penal

O inciso IV caminha na mesma direção ao sugerir que o juiz considere, como circunstância impeditiva da liberdade, o simples fato de o custodiado possuir inquéritos ou responder a ações penais em curso.

Do ponto de vista garantista, o problema é evidente:

  • inquéritos são peças inquisitivas, sem contraditório, sem defesa técnica plena, sem controle judicial substancial;

  • o curso de uma ação penal não significa culpa, tampouco probabilidade de condenação;

  • investigações podem ser arquivadas, denúncias rejeitadas e ações penais podem resultar em absolvição.

Ainda assim, a existência de tais procedimentos passa a atuar como verdadeiro marco negativo de periculosidade, legitimando prisões preventivas e dificultando o acesso à liberdade provisória.

Isso institucionaliza o que a jurisprudência vinha paulatinamente combatendo:
a transformação de inquéritos e processos em curso em pseudo-antecedentes criminais.


2. A coleta compulsória de DNA (art. 310-A): a mais grave das inovações

A alteração mais sensível e preocupante do pacote legislativo é, sem dúvida, o novo art. 310-A do CPP, que determina que, nos casos de prisão em flagrante por determinados delitos, o Ministério Público ou a autoridade policial requererá a coleta do material genético do custodiado para fins de identificação e armazenamento em banco de perfis genéticos.

Trata-se de medida com consequências profundas:

2.1. A violação ao princípio da não autoincriminação

A coleta de DNA não envolve apenas identificação civil. Trata-se de obtenção compulsória de material probatório apto a produzir evidências incriminatórias em outros casos, inclusive futuros.

Isso viola diretamente:

  • o direito de não produzir prova contra si mesmo (nemo tenetur se detegere);

  • o direito à integridade física;

  • a voluntariedade dos atos de colaboração.

Ainda que a lei preveja a coleta “preferencialmente” em audiência de custódia e mediante cadeia de custódia, o ponto central permanece: o ato é obrigatório, independentemente da vontade do custodiado, e o perfil genético será armazenado em banco estatal.

2.2. Risco de uso probatório ampliado

Embora a lei mencione finalidades identificatórias, a experiência comparada demonstra que bancos genéticos são gradualmente utilizados para:

  • vincular investigados a crimes pretéritos;

  • ampliar investigações sem controle judicial prévio;

  • cruzamento com bancos não criminais;

  • políticas de policiamento preditivo.

O perigo é que indivíduos presos em flagrante — muitos deles posteriormente absolvidos — passem a integrar bancos genéticos permanentes, com potenciais impactos discriminatórios e invasivos.

2.3. A desproporção da medida

A coleta compulsória equipara custodiados a condenados definitivos, apagando a distinção fundamental entre:

  • suspeito;

  • investigado;

  • réu;

  • condenado.

O processo penal constitucional não admite que suspeitos sejam tratados como culpados “em nome da utilidade probatória”.


3. A redefinição da “periculosidade” no art. 312, § 3º: o retorno de um conceito indeterminado

O novo § 3º do art. 312 enumera fatores a serem considerados na aferição da periculosidade do agente — requisito utilizado para fundamentar a prisão preventiva por risco à ordem pública.

Os três primeiros incisos (modus operandi, participação em organização criminosa e quantidade/natureza de drogas ou armas) já integravam a interpretação consolidada dos tribunais. O ponto novo — e inquietante — é o inciso IV, que inclui como parâmetro:

“a existência de outros inquéritos e ações penais em curso”.

A consequência prática é gravíssima:

  • transforma-se o simples fato de haver investigação em curso em indício de reiteração delitiva, ainda que não haja denúncia, provas robustas ou contraditório;

  • reforça-se uma noção ampliada e subjetiva de periculosidade, descolada de fatos concretos do caso analisado;

  • cria-se ambiente propício para prisões preventivas baseadas em uma “soma de suspeitas”, e não em fundamentos concretos.

A nova redação contradiz a jurisprudência do STF e do STJ, segundo a qual:

  • inquéritos não são aptos a justificar prisão preventiva;

  • ações penais em curso não servem como antecedentes;

  • juízo de periculosidade não pode ser presumido, mas demonstrado.

Com o novo texto legal, abre-se espaço para fundamentações preventivas genéricas, amparadas em elementos frágeis e extraprocessuais.


Conclusão: um retrocesso que exige resistência jurídica e acadêmica

As alterações promovidas pela Lei 15.272/2025 no capítulo das prisões inauguram um período de inegável tensionamento entre política criminal expansiva e garantias constitucionais.

  • O art. 310, § 5º, III e IV enfraquece a presunção de inocência e institucionaliza o uso de procedimentos não condenatórios como fundamento de encarceramento.

  • O art. 310-A representa a mais explícita violação legislativa recente ao princípio da não autoincriminação, ao impor a coleta de DNA de presos em flagrante.

  • O art. 312, § 3º, especialmente em seu inciso IV, legitima a prisão preventiva baseada em investigações inconclusas.

Sob o ponto de vista garantista, essas mudanças não promovem segurança jurídica — antes, invertem a lógica da proteção da liberdade e ampliam o espectro de atuação arbitrária do Estado.

A advocacia criminal, a academia e os operadores comprometidos com o processo penal constitucional terão o desafio de:

  • reinterpretar essas normas à luz da Constituição;

  • evitar leituras maximalistas que ampliem o encarceramento;

  • provocar o controle de convencionalidade;

  • e, se necessário, levar as questões ao STF para contenção dos excessos legislativos.

A defesa deve preservar o seguinte princípio: nenhuma alteração infraconstitucional pode reduzir o núcleo essencial das garantias processuais, especialmente a presunção de inocência e o direito de não permitir que o próprio corpo seja transformado em prova obrigatória.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima